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Cap. 1- Um condomínio, um plano, um
sonho
- Está vendo as estrelas? Como são belas,
não? Pois dizem que cada um daqueles pontinhos, cada uma daquelas estrelas
infinitamente distantes e belas rege outros sistemas e outros planetas, torna
possível outras formas de vida e faz do espaço algo infinitamente maior.
Nós, particularmente, somos regidos por
uma estrela chamada Sol. Ela nos dá luz, calor e energia, por isso este sistema
chama-se Sistema Solar. O terceiro planeta que gira em sua órbita é,
curiosamente, denominado Planeta Terra. Curiosamente porque dois terços de nossa
superfície são água! É nele que nascemos, neste planeta tão diferente e injusto
com seus filhos.
A Terra, por sua vez, é dividida – como
tudo e todos dentro dela são divididos – em dois. Moramos ao sul do lado
ocidental, num continente razoavelmente novo, com muitas desigualdades sociais
e muito explorado até hoje. Chamam-no de América do Sul.
O maior país desse pedacinho da Terra
chama-se Brasil, devido à cor semelhante a da brasa de uma das principais
árvores de nosso território: o pau-brasil. Sendo ele muito grande, aqui moram
muitas pessoas, de etnias diferentes, de crenças diferentes, divididas em 26
estados e um Distrito Federal. Nós temos o privilégio de estar no estado mais
populoso e desenvolvido: São Paulo. Pois não foi por acaso que criaram este
condomínio, o Eden Garden, tão longe da capital paulista e tão próximo do
Paraná, com nome inglês e qualidade de vida de padrão canadense. Aqui a
poluição é menos intensa, os campos são mais verdes, a segurança muito maior e
o acesso às capitais bem difícil para os desprovidos de automóvel. E dentro
disso aqui, como você sabe, existem várias casas que, à noite, vistas de cima,
parecem pontos, estrelas. Uma delas, a minha; outra, a sua, e isso é o mundo, o
planeta.
Parece tão grande, tão infinitamente grande,
que às vezes nos sentimos desnecessários. Mas, pensando bem, somos parte desse
todo, somos todos nós um pouco do universo e ele assim não seria se não
fôssemos nós. Não acha?”.
Betina estava atônita com tanto
conhecimento, não estava acostumada a ler e, muito menos, a conversar com
amigos tão inteligentes.
-Nossa, Aírton, acho que você deveria ser
professor! Mas não entendo, se tem tantos países lá fora, tantas estrelas no
céu, por que moramos isolados de tudo e
de todos?
-Olhe, Betina, a gente não pode falar
muito essas coisas por aí, mas seus irmãos já devem ter dito que aqui é um
lugar para jovens como nós, escolhidos para nascer mais ricos e que não
precisam assistir à miséria, à violência... Entende?
Aírton era um rapaz de catorze anos tão maduro para a média daquele
condomínio que parecia mais velho. Por isso, por essa sede de aprender, era
muitas vezes tachado de bobo e careta. Já Betina, ainda que tivesse a mesma
idade de Aírton, era bem diferente. A garota explosiva aproveitava cada minuto
da vida com seus “amigos” e sonhava um dia poder conhecer o que havia além das
paredes do Eden Garden.
Esse condomínio fora construído por dez
casais amigos, logo depois de o pai de Betina ter sido vítima de um violento
seqüestro, ficando traumatizado com a violência das cidades grandes. Como
gozava de uma renda substancial, decidiu construir esse imenso condomínio, que
hoje abriga quase três mil pessoas, mais de setecentas famílias, todas com
mansões, carros importados e outros luxos. Daqui só saem os homens e mulheres
que trabalham nas capitais. Crianças e jovens, nem pensar! Só Aírton já
conhecia alguns países da Europa porque a mãe o levara numa viagem. Além disso,
já havia se aventurado em passeios pelos shoppings paulistanos algumas vezes,
no mais...
Betina, por exemplo, só comprava no
shopping do condomínio, só lia revistas que chegavam à banca do condomínio e só
via a TV do condomínio, até porque as demais não pegavam por lá. Eden Garden
tinha uma estrutura de segurança, saúde e educação invejável, mas pode imaginar
o leitor como era restrita a visão de mundo da maioria dos que lá residiam.
Daí o porquê de a menina ter ficado tão
pasma com os ensinamentos de Aírton, um dos únicos que ousavam ler e aprender.
Diziam os mais desocupados que ele só era tão
inteligente e sábio por causa de uma doença mental, a qual o
transformava em um supercaptador de informações. Há, entretanto, uma explicação
genética para sua sede de aprendizado: o avô dele, já falecido, fora escritor e
poeta famoso.
Eden Garden, enfim, era o sonho de todo o
menino de rua, talvez o de todo adolescente de classe média, cheio de problemas
e preocupações sociais. Só que Eden Garden se tornava o pesadelo de seus
próprios filhos, que jamais tinham saído de lá e estavam ansiosos por descobrir
os mistérios para além daquela muralha.
A tranqülidade daquela praça, à noite, é
quebrada, de repente, por um jovem alto, correndo um pouco desajeitado e
segurando a haste dos óculos para não caírem. É Camilo, irmão de Betina.
- Gente, já está tudo pronto!
- Como assim? – indaga Aírton.
- Você lembra que há um ano, no churrasco
do aniversário do meu pai, combinamos de um dia fugir deste lugar e conhecer o
que é a vida de verdade? Nós lá em casa levamos a sério, juntamos dinheiro e
temos dez mil reais. Fiquei sabendo que você tem um tio em Porto Alegre que
aluga apartamentos. Também fiquei sabendo que, daqui a uma semana, nossos pais
irão viajar para Sidney a fim de participar de um congresso internacional.
Nossas mães estão super-envolvidas com a Coleção Outono/ Inverno que precisam
divulgar brevemente em suas lojas. Ou seja, tudo se encaixa, é o momento!
- Ainda não entendo.
- Olhe só. O que é amor? E o que é
violência? O que é vida? O que é felicidade? O que é ser livre? O dicionário
não explica muito bem e neste condomínio ninguém descobriu o real significado
dessas palavras. Quero saber o que há lá fora de tão perigoso, quero aprender a
rezar para um Deus como fez minha avó, a ganhar meu próprio dinheiro como fazem
nossos pais, a jogar futebol e não mais este tênis chato!
- Aqui, porém, a gente vai sempre ser só
mais um, mais um jovem, mais um daqueles que na Capital chamam de “Alien”!
- Alienado, Betina! – corrige Camilo. –
E, fugindo, teremos a oportunidade de provar a nós mesmos que somos livres,.
Livres! Ninguém manda em mim, ninguém manda em nenhum de nós. Mas precisamos
provar isso!
Aírton ainda está um pouco nervoso,
embora deslumbrado com a idéia.
- Precisa ser tão cedo? – pergunta.
- Ora, meu caro, se não formos agora,
jamais iremos. Este é o tipo de coisa que não se faz se formos pensar,
precisamos apenas agir por instinto.
- E por que me puseram nessa jogada? Não
tenho dez mil!
- Bem, acho que dois mil e quinhentos
servem para cada um. Com nosso dinheiro bancaremos sua ida, sua estadia. Não
sei até quando ficaremos por lá, na verdade não sei nem o que encontraremos, só
preciso que fale com seu tio. Aliás, você entra na jogada porque é o cara mais
esclarecido deste condomínio.
- Quem vai?
- Eu, a Betina e... e... meu irmão Eloy.
Se Aírton era o mais esclarecido, Eloy
era o mais rebelde. Os dois se detestavam, um era acusado de careta e o outro,
de inconsequente. Só que Eloy, 18 anos, sempre levava a melhor e desde pequeno
gostava de humilhar Aírton.
- O Eloy? Onde está ele? Já sabe que me
convidaram?
- Foi ele quem pediu para convidar você.
É que o mano é mais velho do que nós e sabe que não tem condições de cuidar da
gente. Não sabemos nada sobre cidade grande, precisamos de um cara esclarecido,
que entenda das coisas, que saiba nos defender!
- É, Aírton, - intervém Betina – você
sabe até coisas sobre o Sol e as estrelas, o mundo e o planeta, precisamos de
você!
- Se nossos pais podem ir à Austrália,
por que não podemos ir ali fora?
Aírton ainda permanecia indeciso,
preocupado, mas ao mesmo tempo gostava da idéia de ganhar o mundo. Já tinha
ouvido falar que nas grandes cidades o dinheiro comprava tudo. E eles estavam
bem de grana! Além disso, poderia levar seu laptop e escrever suas
experiências. Quem sabe conseguiria escrever um livro, como seu avô.
Seu tio, de quem falavam, também era um
cara muito legal, irmão de sua mãe, mas que brigara com ela no último Natal e
prometera jamais falar novamente com aqueles “provincianos”. Sua prima, filha
do tal tio, a Pati, ainda hoje escrevia para ele e ia gostar de vê-los lá.
Moravam em Porto Alegre. “Mas como chegariam lá?”, pensa. Resolve perguntar:
- Qual é nosso destino?
- Bem, primeiro vamos até Curitiba. Lá,
vamos num negócio de pegar ônibus, chama-se rovi... rodo... onibusvi...
- Rodoviária, Betina! – completa Aírton.
- Isso, vamos nesse lugar aí pegar um
ônibus para a cidade do seu tio, Porto Alegre.
Isso deve funcionar, esse negócio de “onibusviária”, porque nos filmes
eles fogem direitinho.
- Não vão sentir nossa falta?
- Já avisei a eles que vamos, nós quatro,
passar umas semanas na casa de uma amiga lá do outro lado do condomínio. Na
verdade, nossas mães estão pouco se lixando para nós!
- Não sei... E como chegaremos a
Curitiba? Como sairemos deste lugar? Como enganaremos seguranças tão
bem-preparados?
- Bem, já pensei nisso, também. Conheço o
cara que cuida do helicóptero e ele me garantiu que por 500 reais nos leva até
Curitiba.
- Só que isso é... suborno! – exclama
Aírton.
- E que mal tem? – surpreende-se Betina.
- Digamos que é uma forma muito pouco
ortodoxa de se conseguir as coisas.
- Ah, meu caro, - responde Camilo – eu
não sou muito ortodoxo. Aprenda isto.
Combinam de se encontrar daí a uma
semana, no mesmo local, só que de madrugada. Até lá falar-se-iam só por
telefone. Como estavam de férias, nada faziam, a não ser tomar banho de piscina
em suas casas e jogar o único esporte do local: tênis.
Aírton vai para casa eufórico e ansioso,
já decidido a aceitar: “Vou descobrir o que é este tal de amor de que falam os
livros!”.
Camilo sai pensativo: “Quanto custará a
tal felicidade no shopping de Porto Alegre? Será mais que dez mil? E segurança?
Aqui é barato, pelo que diz o pai...”
Betina está ainda mais entusiasmada:
“Nossa, acho que vou conhecer aqueles gatos que aparecem nas revistas! Será que
o beijo deles tem gosto diferente? Ah, e será que vou usar meu inglês? Não
perguntei pro Camilo se eles falam inglês!”
O mais despreocupado era Eloy, que chegou
em casa mais tarde do que os irmãos e comentou:
- Daqui a uma semana, o fim dos meus
problemas.
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