segunda-feira, 3 de setembro de 2012

RELEITURA DO CAP. 7


Cap. 7. Uma família, uma criança, um quadro

 

        Aírton acorda ofegante, olha para a cama ao lado e vê Betina perdida em pensamentos. Pergunta o que houve:

        - Nada importante. Só estou pensando que hoje vai ser um belo dia! Mas o que houve, Aírton? Está suando! – ela percebe o nervosismo do outro.

        - Foi um sonho, Bê, um sonho. Este último deve ter sido um pesadelo, não lembro bem, acho que eu estava revivendo os socos que levei, pensando no que poderia ter feito para evitar aqueles brutos malditos! Só que antes disso foi um sonho, um sonho bem diferente.

        - Conte-me, conte-me!

        - Não sei... Eu estava caminhando num lugar tranquilo, com um grande gramado verde e cheio de árvores, tudo parecia meio sombreado, quando de repente surgiu uma luz forte, uma luz azul escura, muito forte, e dela saiu uma pessoa.

        - Quem?

        - Não lembro bem... Ela disse seu nome. Bom, o importante são suas palavras. Essa pessoa disse que havia nos criado não para levarmos socos e pontapés, não para morrermos, mas morreríamos, se fosse preciso. Lembrou que nossa missão, ao fugir do Eden Garden, não era a de incentivar os jovens a fugir, apenas a de incentivá-los a viver!

        - O que mais?

        - Desculpou-se por todo esse sofrimento que nos fez passar, mas eu apenas agradeci e pedi que ele nos ensinasse a rezar como Daniel. Ele pediu somente que eu fechasse os olhos e ouvisse a mim mesmo, aí estaria rezando. Ah, o nome dele... agora lembro... era Olecram.

        Betina vira-se e volta a olhar para cima, acha que conhece esse nome de algum lugar. Para afastar tão estranhos pensamentos, e com um pouco de medo daquelas palavras, resolve levantar-se para tomar banho. Aírton permanece deitado.

        Daniel, Eloy e Camilo também se levantam, comem algumas bolachas que compraram no dia anterior e planejam o novo dia. Daniel convida Betina a conhecer algum parque, mas ela diz que não pode, precisa se encontrar com um amigo que conheceu no shopping e pede ajuda de Daniel para chegar ao tal lugar do encontro. Eloy gosta desse negócio de parque e resolve ir até um deles, orientado por Daniel. Camilo reclama que ainda é cedo, mas resolve que vai atrás do dinheiro. Precisa ganhar algum porque acha que vai demorar muito mais do que eles imaginavam para encontrar a tal felicidade.

        Aírton ainda está deitado, apavorado com seu sonho.

        São nove e meia e os quatro despedem-se de Aírton. Saem. Camilo insiste para que Aírton venha com ele, mas o outro nega, diz sentir-se mal e dolorido. A propósito, como saldo da briga, agora Eloy e Camilo precisam sair de óculos escuros, camiseta bem folgada e bermuda, para não apertar os curativos. Betina e Daniel saem primeiro e pegam o ônibus que chega até o campus da PUCRS. Lá é que Betina ia encontrar o tal garoto.

        Depois de muita desordem e muito barulho, o apartamento volta ao seu silêncio absoluto e Aírton perde-se em seus próprios pensamentos. Primeiro, lembra-se de casa, como estariam os pais deles, e sua mãe? Depois, recorda que ainda não falara com o tio, nem com as primas! Poxa, nem sequer viu a pequenina! E que viram ontem à noite, pedindo que passassem na casa do seu Mário, mas apenas usaram aquele pedaço de papel para anotar o telefone do garoto da Betina.

        Aírton fica por algum tempo imerso no silêncio do apartamento e vagando na imensidão de seus pensamentos, confusos como aquela cidade. Quando saíram os quatro jovens se esqueceram de bater a porta. Ela de repente se abre e alguém, de dentro, a fecha, em absoluto silêncio. Aírton nada ouve, permanece deitado.

        Uma pessoa pequenina e de corpo delicado caminha silenciosamente em direção à cozinha... Apaga a luz. Procura por alguém, mas não vê ninguém no primeiro quarto. Abre lentamente a porta do quarto de Aírton, mas este estava virado para o lado e tapado até em cima, como se com medo, protegendo-se do imprevisto. Do sonho, talvez.

        A intrusa, que até então só arrumara o que os jovens não haviam feito, chega mais perto de Aírton, percebe que há alguém ali e toca timidamente em seu ombro. Aírton vira-se gritando por socorro, o que faz a pessoinha de corpo delicado pular para trás e olhá-lo, assustada.

        - Mi, Mi...

        - Aírton? Primo?

        Era Michelli, a filha mais nova de seu Mário e prima de Aírton, aquela mesma que havia invadido seus pensamentos alguns segundos antes.

        - Te assustei, primo? É que a porta estava aberta e...

        - Não, nada disso. – percebendo seu cabelo desajeitado, seu rosto machucado e seu traje de dormir, Aírton pede desculpas à menina, que apenas sorri, baixando a cabeça.

        - Preguiçoso! – diz ela, com uma voz firme, mas suave, extremamente dócil e sincera. Aírton estava sendo conquistado e tomado por um sentimento que jamais conhecera antes: a infância. Sim, porque a infância até os 10 ou 11 anos é uma fase da vida. Depois, vira sentimento, dos mais nobres.

        Conversam algum tempo, ela sempre comportada, sentada na cama em que antes dormira Betina, com as mãos sobre os joelhos e a cabeça baixa.

        - Quantos anos tem?

        - Oito.

        - Puxa! E a Pati, com quantos anos ela está?

        - Quinze.

        - Repuxa!

        A garota ri, porque Aírton falara “repuxa” só para brincar e fazê-la sorrir, gostava de vê-la alegre. Como se perdendo a vergonha, ela se aproxima do primo e o surpreende com cócegas. Ele é muito sensível a isso e chora de tanto rir. Michelli corre, ele atrás, ambos brincando como se estivessem num jardim de infância.

        Só mesmo uma atitude com essa simplicidade infantil para tirar Aírton de seus pensamentos tortuosos, de sua autoculpa. Cansam-se de correr e sentam-se no chão mesmo; Michelli já despenteada e ofegante. Aírton  está fascinado pela prima.

        - Ufa, cansei! Não faça isso, que sinto cócegas demais! – eles riem – Michelli, mas o que veio fazer aqui?

        - Ah, que cabeça minha... Chegou para vocês um quadro e deixaram lá em casa. O pai pediu para que eu viesse avisar. Ele viu quando teus amigos saíram.

        - Todo o edifício viu... – comenta Aírton. Ela sorri, concordando. – Espera um pouco, vou me vestir.

        Dois minutos depois aparece Aírton e eles descem de mãos dadas. “Alguma coisa faz aquela fuga começar a valer a pena”, pensa.

       

        - Betina, isto é uma universidade; aqui as pessoas estudam para depois trabalharem. Mamãe sempre dizia que eu viria para uma quase que nem essa, se fosse bom aluno. Só que... Bem, hoje em dia estas universidades são só para pessoas como vocês, que sequer sabem o que é felicidade!

        Betina, nota uma ponta de amargura nas palavras de Daniel.

        - Pô, Daniel, pára com isso!

        A garota havia combinado de se encontrar com um cara que conhecera no shopping a esta hora e numa tal estátua. Qual seria a estátua? Daniel tinha vindo para acompanhá-la, desgostoso com o que poderia presenciar. Pergunta se há alguma estátua na universidade e uma senhora responde que sim, a estátua de Marcelino Champagnat, grande fundador daquela província, e agora, São Marcelino Champagnat.

        Dirigem-se até lá e um cara alto, cabelo preso, vestido que nem “skatista”, com aquelas calças deixando um pedaço da bunda à vista, se não fosse a camisa xadrez a tapar, já espera Betina. Eles se aproximam e o tal cara pergunta se Daniel não quer dar uma voltinha, comprar um sorvete, enfim, sumir dali! No início, ele resiste, não tinha ido com a cara do sujeito. Mas, a pedido de Betina, ele sai. Tropeça no skate que estava no chão; o casal ri; Daniel abaixa a cabeça. Mas não vai comprar sorvete: fica recostado numa árvore observando os dois.

        Daniel os vê se aproximarem, o cara pegar na mão de Betina, eles falando alguma coisa, ela com um olhar de realizada e ele com um de galanteador. O garoto vira o boné para trás e aproxima-se mais e mais de Betina. Beijam-se.

        O nosso ex-menino de rua deixa-se então cair e senta-se choramingando ali ao pé da árvore. Não consegue entender como pode uma pessoa ser tão fútil, desprezar tão sincero amor para agarrar-se a um desconhecido. Aquilo era “ficar”, mas ele não conhecia isso. Para Betina, era mais um na listinha. Para o carinha, talvez fosse mais uma na coleção.

        Daniel estava inconsolável. “Que coisa, esses quatro riquinhos vieram lá de São Paulo, me tiraram da rua e me deram de comer, por isso sou grato. Mas aí o tal destino me fez gostar desta menina boba e agora cá estou a chorar porque ela é igual às outras, igual àquelas que conhecera na vila e que dormiam com qualquer vagabundo a qualquer hora! Pessoas desse tipo não são nada, apenas têm tudo!”

        Só a árvore o consola.

 

        Camilo passeia despreocupado na rua e vê um cara vendendo suco de laranja na esquina. Tem uma idéia. Lá no Eden Garden esses sucos eram proibidos, aqui também deviam sê-lo e ele tem uma grande idéia! Precisava de dinheiro, né? Então, não era nada má  sua idéia, nada má...

 

        Eloy, por sua vez, parecia fascinado com aquele parque. Chamam-no de Marinha, e ele até já aprendera a jogar futebol, ou melhor, chutar a bola, porque parecia ser desajeitado demais para aquilo. Agora caminhava e contava piada, despreocupado, com uns caras um tanto perigosos. Mas para ele perigoso era parecer careta:

        - Tem fogo?

 

        Na casa de seu Mário, é Aírton quem fala:

        - Tio Mário, gostei de minha priminha, que garota mais simpética!

        - Pai, gostei do meu priminho, que garoto mais simpático! – retruca ironicamente Michelli, rindo.

        - Que bom, que bom! Entra, sobrinho, não te acanha e entra. O que tens achado de Porto Alegre?

        - Mais ou menos, tio, as coisas por aqui não são tão fáceis...

        - Nada fáceis, meu caro, nada fáceis. Pior ainda para vocês, jovens, tão sonhadores e tão vulneráveis...     

- Como assim, o que é isso?

        Michelli, a esta altura, já está em seu quarto.

        - Como posso dizer... vocês não conhecem o que é o bem e o mal, não têm malícia, não saberiam identificar o perigo, o que é perigoso. Vejo que andaram levando uns socos, eis a prova.

        “Tio Mário tem razão”, pensa Aírton, “nós já levamos uma surra e pusemos para dentro de nossa própria casa um garoto que nem conhecíamos!”.

        - Pois é, tchê, aqui as coisas são perigosas, pessoas que parecem indefesas se mostram monstros prontos para persuadi-lo e roubar todo seu dinheiro, mesmo que não seja através do soco, do roubo de fato, através de meninas, de tóxicos...

 

        Eloy agora se sente bem, no meio de pessoas que como ele, divertem-se acima de tudo. Já está sem camisa e há tempo que olha para uma gatinha que também não desgruda os olhos dele...

        - Pior, Aírton, são as pessoas que residem debaixo de nosso teto e que, de repente, mostram-se bem diferentes daquilo que imaginávamos! Normalmente, o que as transforma é o dinheiro, a ambição. Vê a mãe de minhas próprias filhas! Elas se fazem de coitadas, de boazinhas, e podem usar isso como artifício para roubar. Tu podes estar sendo usado!

 

        A grande idéia de Camilo consistia em comprar algumas latinhas de refri em um lugar que custava bem baratinho (ele certamente trapaceou o comerciante na hora da contagem) e vendê-las nas mesmas esquinas em que os outros vendiam suco. Claro que a Coca-Cola de Aírton saía muito mais, porque ele gritava muito e inferiorizava o produto dos concorrentes. “Dez reais em poucos minutos! E de lucro”, pensa Camilo.

 

        - Sim, sim, meu sobrinho. Conheço bem os jovens, e pior do que os perigosos e do que os falsos ( se bem que todo perigoso é falso e vice-versa) são os que a tua geração chama de galinha. Eles atacam nas praças e nos shoppings, na noite principalmente, e fazem das garotas objetos de desejo, beijam-nas como se estivessem mascando chiclete, ostentam com orgulho a marca de trinta ou cinquenta “ficantes”! – continua seu Mário.

        Aírton já está espantado e com os olhos arregalados.

 

        Daniel não quer mais ver tamanho absurdo, o guri que antes só beijava Betina agora a agarra. E a pobre estátua certamente os expulsaria dali, se pudesse.

 

        - Nossa, tio, só de pensar que a esta hora meus amigos estão na rua! Podem estar sendo persuadidos por esses tais! Que horror!

        - Calma, Aírton, calma. Para ajudá-los, apenas fecha os olhos e ouve a ti mesmo.

        - O tio quer dizer... rezar?

        - É que tem gente que chama de reza. O importante é que acredites no que pedes, acredites em ti e não deixes que essas pessoas sejam mais fortes do que tu.

        Aírton olha para Michelli, que desenha despreocupada. Ele vai até  lá e a beija despedindo-se, vai subir para almoçar. Aquele contato delicado com a prima o faz esquecer um pouco sua preocupação. Só que antes de sair, ainda ouve no som do tio um trecho de um CD de Elis Regina:

 

        Minha dor é perceber

que apesar de termos feito tudo isso que fizemos

ainda somos os mesmos

e vivemos

como nossos pais.

 

 

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