Cap. 8. Uma revelação, um passado, um
país.
São três horas da tarde e Aírton já
almoçou o resto de uma pizza que pediram na noite anterior.
Pensa, olha pela janela o sol que brilha
apenas para alguns, para os que estão no outro prédio, não para ele. Reclama:
- Na cidade grande até o sol é
privilégio de alguns!
- Falas sozinho? – É Daniel que chega.
- Poxa
menino, não me assusta!
- Desculpa.
- Cadê a Bê?
- Ficou lá, ficou “ficando”, como ela
diz. O carinha a traz daqui a pouco.
Daniel senta-se na poltrona ao lado de
Aírton. Suas feições tentam esconder, mas estão mais do que decepcionadas,
humilhadas, desacreditadas. O garoto de mesma idade de Airton, mas igualmente
mais maduro que os demais, de repente deixa escapar:
- Eu não agüento mais!
- Onde foi Daniel?
- Nada, nada...
- Você sempre diz a mesma coisa! –
Aírton, na verdade estava preocupado com Daniel. É que se lembrava do que seu
tio dissera, e, em vez de pensar nos seus demais amigos, preocupava-se é com
aquele jovem agora à frente dele. – De onde vem? Como foi parar na rodoviária?
- Sou menino de rua, apenas isso. - diz,
esquivando-se, Daniel.
- Nada disso, você sabe muito para um
simples menino de rua. Até seu português não é de um simples menino vagal.
- Os meninos de rua não são vagal!
- Por que não trabalham, então?
- Acha que é fácil, Aírton, acha? –
Daniel agora chora, como se desabafando – Não tem que dê emprego a uma pessoa
suja, sem casa, menor de idade. Por isso muitos roubam, por isso tanta
violência, por causa da miséria, da desigualdade. Vocês são ricos, não sabem
nem o que é Deus, o que é um negro!
Aírton sempre fora orgulhoso, mas via o
mundo desabar sobre si. Se a moeda tinha dois lados, eis a cara.
- Vivo num país diferente do teu,
separado não por uma estrada ou por um rio, mas por uma oportunidade, que teus
pais tiveram e os meus não! Vivo sobrevivendo e sei bem o que é felicidade.
Para mim, felicidade maior era isto aqui, este “AP”, vocês mesmos, a companhia
e a confiança de vocês. Eu sei, eu sei que vocês só querem me usar, mas para
mim bastava! Entretanto, fiquei “burguês” do dia para a noite e passei a me dar
ao luxo de amar!
- Como assim? Você sabe o que é amor?
- Acho que sim! Acho que é o que não
sente a Betina. Acho que é o que eu sinto agora por ela! Só que vocês acham que
nós, pobres, não conhecemos o amor, apenas o ódio.
- Fale-me de seu passado. Você falou de
seus pais, nunca pensei que...
- Ah, claro, deves achar que sou filho
da esquina com um ônibus que nela penetrou! Não, também fui parido e, se queres
saber, foi num leito de hospital com tudo a minha volta, enfermeiras, médicos,
até flores dizem que recebi!
Daniel resolve se abrir e pôr para fora
um segredo, uma vida inteira. Enxuga as lágrimas. Respira fundo.
- Minha mãe chamava-se Dirce, não era
rica, mas tinha dinheiro, trabalhava como gerente de uma lancheria e meu pai
era dono, conheceram-se lá. Só que a desgraçada da bebida era mais importante
para o desgraçado do meu pai do que minha própria mãe! Ele bebia, batia nela e,
o que é pior, jogava! Jogava tanto que um dia jogou a lanchonete. Perdeu.
Depois, jogou a casa e não quis entregar. Também não contou para ninguém. Mamãe
sabia que as coisas estavam erradas porque apanhava com mais frequência, sinal
de que meu pai bebia também com mais freqüência.
Os olhos do garoto já atestam sua
emoção. Continua:
- Aí, um dia, entraram uns bandidos lá
em casa, dizendo-se credores, e mataram com dois cruéis disparos o meu pai,
expulsando-nos de nossa própria casa dizendo que agora ela era “a sua casa”! Só
que mamãe tinha algum dinheiro e, passado o susto e cicatrizadas as lágrimas,
comprou um pequeno apartamento para nossa família na vila. Eu tinha, na época,
uns quatro anos, lembro-me porque meu irmão tinha oito e me contava tudo.
- Você tem irmão?
- Sim, ele era um bom músico, tinha um
violão e adorava dedilhar aquele negócio difícil! Mas continuando. Moramos nós
três no apartamento durante dez anos. No primeiro ano era tudo recomeço, no
segundo e no terceiro, novidade, só que, a partir do sétimo ano, as coisas
ficaram insuportáveis, mamãe inconsolável. E ela deixou-se levar pelo vício. O
mesmo álcool que a batia de noite fez meu irmão apanhar muito, muito! Deves
imaginar, Aírton, que ele precisava descontar em alguém e não era no seu
querido violão. Apanhei, também, só que ainda mais forte, porque em mim as
bofetadas tinham o peso de meu pai, de minha mãe e, finalmente, de meu irmão!
Este não bebia, mas era consumido pela raiva e pelo medo. Quando levei a
primeira surra, tinha onze anos, e desde então resolvi nunca mais falar com
minha família e nem com meus vizinhos. Saía cedo todo dia e voltava só à noite.
Fiquei muito amigo dos meninos de rua e trocava idéias com eles, até conseguia
uns trocados! Lá na vila diziam que eu era bobo, diferente, débil mental.
O olhar atento de Aírton inspirava
confiança em Daniel.
- Um dia, quando voltei para casa,
ansioso para mostrar ao mano e a minha mãe, as moedinhas que ganhara na
esquina, mostrar-lhes, enfim, que eu não era inútil, escutei apenas a melodia
falha e a voz triste de meu irmão cantarolar na sala, com a porta do
apartamento entreaberta:
Estátuas
e cofres e paredes pintadas
ninguém sabe o que aconteceu
ela se jogou da
janela do meu andar
nada fácil de
entender.
Passa a mão nos olhos e continua:
- Nunca mais apanhei nem meu irmão. Ele,
acho que toca a mesma música, na mesma posição, até hoje. Enlouqueceu. Mamãe,
já cansada da vida, jogou-se da janela do nosso apartamento. Eu, em estado de
choque, não pensei em outra coisa senão em jogar as moedas no chão e sair, sair
correndo, como se fugindo de tudo e de todos. Era noite, mas eu corri tanto,
tanto, que numa certa altura caí e dormi.
Aírton ouve, já deixando escapar algumas
lágrimas.
- No outro dia, comecei a analisar o
quanto era grave a situação. Chorei, chorei muito. O dia todo. No terceiro dia,
porém, fui à igreja e lá encontrei um mendigo conhecido meu que me levou para a
rodoviária. Lá fiquei uns dois meses, até que o destino pôs o salto de Betina a
pisar na minha perna. Entendes, agora, por que não falo de meu passado?
- Isso tudo há meses... – Aírton está
pasmo – E seu irmão?
- Isso me assusta! Enquanto ele, a esta
hora, continua cantarolando os mesmos versos fúnebres daquela noite, eu
choramingo porque a Betina não quer saber de mim. Eu deveria ter chorado dias e
mais dias a perda da minha família, mas até fiquei aliviado porque jamais
apanharia de novo.
- Agora entendo porque você fugiu
naquela noite dos brutamontes...
- E também por que tirei Betina de lá.
- Sim, sim, e por que fumaste calado.
- É, na rua a gente às vezes fumava ou
até cheirava cola, mas só às vezes, não deu para viciar.
Os dois se calaram. Aírton estava
estarrecido com tudo aquilo. Como podem universos tão diferentes dividindo o
mesmo apartamento? E mundos tão distintos no mesmo país? Ele apenas olha para
Daniel e lembra-se o que dissera seu tio. Olha para Daniel, fecha os olhos e
ouve a si mesmo, para pedir perdão pela desconfiança que teve do amigo.
- Daniel, desculpe.
O outro chora, agora não mais de
tristeza e sim de emoção. Estava naquele exato momento ensinando a Aírton a primeira lição que ele precisava
aprender: o que era a vida. A vida de verdade.
Tocam na porta, fazendo muito barulho.
Chegam Eloy, Betina e Camilo. Mas suas gargalhadas não pareciam as mesmas...
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