segunda-feira, 3 de setembro de 2012

RELEITURA DO CAP. 8


Cap. 8. Uma revelação, um passado, um país.

 

        São três horas da tarde e Aírton já almoçou o resto de uma pizza que pediram na noite anterior.

        Pensa, olha pela janela o sol que brilha apenas para alguns, para os que estão no outro prédio, não para ele. Reclama:

        - Na cidade grande até o sol é privilégio de alguns!

        - Falas sozinho? – É Daniel que chega.

        - Poxa  menino, não me assusta!

        - Desculpa.

        - Cadê a Bê?

        - Ficou lá, ficou “ficando”, como ela diz. O carinha a traz daqui a pouco.

        Daniel senta-se na poltrona ao lado de Aírton. Suas feições tentam esconder, mas estão mais do que decepcionadas, humilhadas, desacreditadas. O garoto de mesma idade de Airton, mas igualmente mais maduro que os demais, de repente deixa escapar:

        - Eu não agüento mais!

        - Onde foi Daniel?

        - Nada, nada...

        - Você sempre diz a mesma coisa! – Aírton, na verdade estava preocupado com Daniel. É que se lembrava do que seu tio dissera, e, em vez de pensar nos seus demais amigos, preocupava-se é com aquele jovem agora à frente dele. – De onde vem? Como foi  parar na rodoviária?

        - Sou menino de rua, apenas isso. - diz, esquivando-se, Daniel.

        - Nada disso, você sabe muito para um simples menino de rua. Até seu português não é de um simples menino vagal.

        - Os meninos de rua não são vagal!

        - Por que não trabalham, então?

        - Acha que é fácil, Aírton, acha? – Daniel agora chora, como se desabafando – Não tem que dê emprego a uma pessoa suja, sem casa, menor de idade. Por isso muitos roubam, por isso tanta violência, por causa da miséria, da desigualdade. Vocês são ricos, não sabem nem o que é Deus, o que é um negro!

        Aírton sempre fora orgulhoso, mas via o mundo desabar sobre si. Se a moeda tinha dois lados, eis a cara.

        - Vivo num país diferente do teu, separado não por uma estrada ou por um rio, mas por uma oportunidade, que teus pais tiveram e os meus não! Vivo sobrevivendo e sei bem o que é felicidade. Para mim, felicidade maior era isto aqui, este “AP”, vocês mesmos, a companhia e a confiança de vocês. Eu sei, eu sei que vocês só querem me usar, mas para mim bastava! Entretanto, fiquei “burguês” do dia para a noite e passei a me dar ao luxo de amar!

        - Como assim? Você sabe o que é amor?

        - Acho que sim! Acho que é o que não sente a Betina. Acho que é o que eu sinto agora por ela! Só que vocês acham que nós, pobres, não conhecemos o amor, apenas o ódio.

        - Fale-me de seu passado. Você falou de seus pais, nunca pensei que...

        - Ah, claro, deves achar que sou filho da esquina com um ônibus que nela penetrou! Não, também fui parido e, se queres saber, foi num leito de hospital com tudo a minha volta, enfermeiras, médicos, até flores dizem que recebi!

        Daniel resolve se abrir e pôr para fora um segredo, uma vida inteira. Enxuga as lágrimas. Respira fundo.

        - Minha mãe chamava-se Dirce, não era rica, mas tinha dinheiro, trabalhava como gerente de uma lancheria e meu pai era dono, conheceram-se lá. Só que a desgraçada da bebida era mais importante para o desgraçado do meu pai do que minha própria mãe! Ele bebia, batia nela e, o que é pior, jogava! Jogava tanto que um dia jogou a lanchonete. Perdeu. Depois, jogou a casa e não quis entregar. Também não contou para ninguém. Mamãe sabia que as coisas estavam erradas porque apanhava com mais frequência, sinal de que meu pai bebia também com mais freqüência.

        Os olhos do garoto já atestam sua emoção. Continua:

        - Aí, um dia, entraram uns bandidos lá em casa, dizendo-se credores, e mataram com dois cruéis disparos o meu pai, expulsando-nos de nossa própria casa dizendo que agora ela era “a sua casa”! Só que mamãe tinha algum dinheiro e, passado o susto e cicatrizadas as lágrimas, comprou um pequeno apartamento para nossa família na vila. Eu tinha, na época, uns quatro anos, lembro-me porque meu irmão tinha oito e me contava tudo.

        - Você tem irmão?

        - Sim, ele era um bom músico, tinha um violão e adorava dedilhar aquele negócio difícil! Mas continuando. Moramos nós três no apartamento durante dez anos. No primeiro ano era tudo recomeço, no segundo e no terceiro, novidade, só que, a partir do sétimo ano, as coisas ficaram insuportáveis, mamãe inconsolável. E ela deixou-se levar pelo vício. O mesmo álcool que a batia de noite fez meu irmão apanhar muito, muito! Deves imaginar, Aírton, que ele precisava descontar em alguém e não era no seu querido violão. Apanhei, também, só que ainda mais forte, porque em mim as bofetadas tinham o peso de meu pai, de minha mãe e, finalmente, de meu irmão! Este não bebia, mas era consumido pela raiva e pelo medo. Quando levei a primeira surra, tinha onze anos, e desde então resolvi nunca mais falar com minha família e nem com meus vizinhos. Saía cedo todo dia e voltava só à noite. Fiquei muito amigo dos meninos de rua e trocava idéias com eles, até conseguia uns trocados! Lá na vila diziam que eu era bobo, diferente, débil mental.

        O olhar atento de Aírton inspirava confiança em Daniel.

        - Um dia, quando voltei para casa, ansioso para mostrar ao mano e a minha mãe, as moedinhas que ganhara na esquina, mostrar-lhes, enfim, que eu não era inútil, escutei apenas a melodia falha e a voz triste de meu irmão cantarolar na sala, com a porta do apartamento entreaberta:

        Estátuas e cofres e paredes pintadas

ninguém sabe o que aconteceu

        ela se jogou da janela do meu andar

        nada fácil de entender.

 

        Passa a mão nos olhos e continua:

        - Nunca mais apanhei nem meu irmão. Ele, acho que toca a mesma música, na mesma posição, até hoje. Enlouqueceu. Mamãe, já cansada da vida, jogou-se da janela do nosso apartamento. Eu, em estado de choque, não pensei em outra coisa senão em jogar as moedas no chão e sair, sair correndo, como se fugindo de tudo e de todos. Era noite, mas eu corri tanto, tanto, que numa certa altura caí e dormi.

        Aírton ouve, já deixando escapar algumas lágrimas.

        - No outro dia, comecei a analisar o quanto era grave a situação. Chorei, chorei muito. O dia todo. No terceiro dia, porém, fui à igreja e lá encontrei um mendigo conhecido meu que me levou para a rodoviária. Lá fiquei uns dois meses, até que o destino pôs o salto de Betina a pisar na minha perna. Entendes, agora, por que não falo de meu passado?

        - Isso tudo há meses... – Aírton está pasmo – E seu irmão?

        - Isso me assusta! Enquanto ele, a esta hora, continua cantarolando os mesmos versos fúnebres daquela noite, eu choramingo porque a Betina não quer saber de mim. Eu deveria ter chorado dias e mais dias a perda da minha família, mas até fiquei aliviado porque jamais apanharia de novo.

        - Agora entendo porque você fugiu naquela noite dos brutamontes...

        - E também por que tirei Betina de lá.

        - Sim, sim, e por que fumaste calado.

        - É, na rua a gente às vezes fumava ou até cheirava cola, mas só às vezes, não deu para viciar.

        Os dois se calaram. Aírton estava estarrecido com tudo aquilo. Como podem universos tão diferentes dividindo o mesmo apartamento? E mundos tão distintos no mesmo país? Ele apenas olha para Daniel e lembra-se o que dissera seu tio. Olha para Daniel, fecha os olhos e ouve a si mesmo, para pedir perdão pela desconfiança que teve do amigo.

        - Daniel, desculpe.

        O outro chora, agora não mais de tristeza e sim de emoção. Estava naquele exato momento ensinando a Aírton a primeira lição que ele precisava aprender: o que era a vida. A vida de verdade.

        Tocam na porta, fazendo muito barulho. Chegam Eloy, Betina e Camilo. Mas suas gargalhadas não pareciam as mesmas...

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