segunda-feira, 3 de setembro de 2012

RELEITURA DO CAP. 4


Cap. 4 - Um tio, um professor, um novo lar

        Só mesmo o sofá e aquela sala aconchegante para testemunhar a empolgação do grisalho senhor ao falar no telefone:

        - Mas não adianta, tchê... Não, não adianta tentar entender esta juventude, eles são tão misteriosos, tão enigmáticos e tão diferentes.

        Agora ouve o outro lado da linha. Continua.

        - Gosto, gosto barbaridade de trabalhar com eles, mas não consigo conhecer de verdade o perfil do jovem! Para mim, eles são tri inteligentes e escondem uma baita capacidade, mas ninguém faz questão de ouvi-los, ninguém quer saber o que eles tentam dizer, apenas o que dizem. Conheço, sim, a juventude, porque convivo com ela. Tenho quase sessenta, mas sou um guri, tchê, um guri!

        Risos.

        - Pois é, dou aula para muitos, sou pai de duas e converso com vários, mas jamais conhecerei todos. Daí o enigma, os jovens não se repetem, não são iguais, vão ficando iguais, uns aos outros por falta de personalidade.. E por falta de alguém que lhes ensine o que é personalidade.

        O outro pergunta alguma coisa:

        - Bah, e se tento fazer isso no cursinho! Mas é difícil. Devem me ouvir um pouco, pelo menos eles gostam deste velho barrigudo aqui. Dou aula de História, mas não adianta ficar falando do mundo no tempo de seus tatatataravós, se eles não conhecem nem seu próprio país É como digo pro meu professor de Espanhol: não adianta aprender uma língua estranha sem sequer saber a verdadeira linguagem do homem, a linguagem do coração e do sentimento.

        - Na verdade, não sei se minhas filhas são normais. O que é normal, para ti? São filhos de pais separados? Neste aspecto, são normais. Não fumam nem bebem nem se drogam; neste aspecto seriam anormais, talvez... Não usam tênis nem boné importados, não posso comprar para elas e isso  talvez também as faça anormais. Mas a mais velha gosta de Capri, Caprio, e isso acho que faz dela normal. Enfim, não sei se são normais, porque não sei o que achas normal. No meu ponto de vista, elas são corretas, e isso é importante.

        - Barbaridade... Pois é, pois é... Só que tu, Silveira, ainda é novo na profissão. Tá fazendo esta tese de psicologia juvenil com quase cinquenta na cara! Aí, fica difícil!

        Mais risos, agora gargalhadas:

        - Brincadeira, já dizia um famoso cineasta: “A idade está na cabeça. Nunca fui tão velho quanto nos meus 14 anos”. E concordo com ele, tchê, concordo com ele.

        - Um conselho? Bem, o que digo para meus alunos é que aprendam a ouvir três vozes: a dos mais velhos, a do universo e a do coração, que fala sem falar, sem provocar som. Só que para ti preciso dar um conselho diferente, não é mais piá, então te digo, trata o jovem como ele realmente é: um homem. Um guri gaúcho no sentido mais literal da palavra: da liberdade. Como alguém livre. Nada de mentiras...

        - Não, não, não uso dicionário de gírias para entendê-los. A gíria é um meio de defesa, ensina-lhes o que falar que saberão quais palavras usar...

        Toca a campainha. Mário falava animado ao telefone com um amigo que se aventurava a voltar à faculdade. Suas filhas já estavam dormindo. Pede licença ao amigo, não desliga apenas põe o fone ao lado e vai atender, curioso, a porta.

        - Oi, tio!

        Primeiro, o susto. Mário os esperava, mas não àquela hora. E não cinco! Depois a emoção, falava de jovens e eis que surge um grupo de uma só vez! Por fim, o abraço, o convite para entrar e o tchau para o amigo do telefone.

        Com quase sessenta anos e uma energia de trinta, seu Mário é um daqueles mestres que encantam seus alunos não só pelas lições dos livros como pelas lições da vida. Fala de seu tempo, lembra que o futuro está nas mãos que se esfregarão nervosas no dia do vestibular. Conserva um grande bigode grisalho com muito orgulho, porque, segundo ele, ali está a prova de seu gauderismo. Na verdade, ele nasceu em São Paulo, como toda a família de Aírton, mas mudou-se para o Rio Grande do Sul depois da anistia e ficou fascinado com a recepção dos gaúchos.

        Agora o experiente professor parecia uma criança admirando seu sobrinho. Já estavam sentados há alguns minutos e era responsabilidade dele falar alguma coisa:

        - De onde vêm?

        - Pô, tio, falei que ia vir para Porto nestas férias, porque a mãe está lá pelos lados de Torres e queríamos conhecer a cidade... – Aírton mentia, mas convencia. Não havia falado nada disso, apenas pedido que o tio arrumasse um apê para eles.

        - Mas bah, tchê, sabe que ando com a memória fraca! Barbaridade! Pode deixar que vou ali pegar a chave. Querem alguma coisa, um café, um chimarrão? Não, não, vocês têm cara de refri. Querem uma Coca?

        Eles negam e dão a entender que querem ir logo para o tal apartamento. Finalmente, Mário chega com a chave:

        - Piá, que saudade... Mas vão logo e juízo, gurizada, juízo...

 

        Sobem as escadas e abrem a porta. Logo que a fecham, antes mesmo de pôr as malas sobre o sofá, Eloy comenta ironicamente:

        - Mas bah, tchê, que gaúcho trilegal!

        Todos riem, só Aírton não gosta do comentário, mas prefere silenciar para não causar atritos.

        - Como iremos nos acomodar?

        - No quê? Quem é acomodado? – pergunta Betina.

        - Olhe, Daniel: - intervém Camilo – você dorme com o Aírton e eu, com o Eloy. Betina, você fica no sofá.

        Diante da reclamação da menina e dos gritos de um lado e de outro, Daniel tenta conciliar:

        - Nada disso, dorme tu com o Aírton que eu até achei este sofá confortável!

        - Bem melhor que o chão da rodoviária – ironiza Camilo. O clima pesa e todos vão a seus quartos brigar, agora, pela cama:

        - Eu fico na que está perto  da janela!–grita um.

        - Não, eu pedi primeiro! – grita outro.

        Daniel apenas pergunta se pode ir para o banho e os outros dizem, aliviados, que sim.

        O apartamento sempre estava em ótimo estado e espera de algum hóspede, pois Mário tinha muitos amigos que o visitavam com frequência. Era muito bem-arrumado: dois quartos, sendo um de casal, cozinha, banheiro, dependência de empregada e uma sala bastante confortável. Obviamente, os ex-moradores do Eden Garden acharam tudo aquilo muito esquisito, apertado, mas ao mesmo tempo fascinante.

        Passa algum tempo e eles já parecem ter decifrado alguns dos principais mistérios daquele apartamento sem chuveiro a gás, com ventilador (conheciam apenas o condicionador de ar) e sem  micro-ondas. Camilo e Aírton já haviam ligado seus laptops, Daniel permanecia sentado timidamente no sofá ouvindo a bagunça de seus “amigos”. Então, trajando apenas uma fina camisola que deixava em evidências suas belas formas, com o cabelo úmido e reclamando do banho frio, Betina chega na sala e senta-se perto de Daniel. Troca duas palavras com ele, mas o garoto responde com timidez.

        Na verdade, enquanto Betina aprecia as fotos de seus ídolos na Capricho que folheia, Daniel analisa cada movimento e cada curva dela. Ele está hipnotizado, ela o conquistou com aquele jeito simples de quem sai do banho e agora ele, não a via mais como a patricinha que tinha pisado em sua perna, deixando ali um hematoma, e sim como a garota mais linda que ele já tinha visto. Exagero, claro, mas Betina nem sonhava com isso, porque, senão, mudaria totalmente sua pose. Ela, na verdade, adorava quando alguém a observava, mas jamais imaginaria ser observada com trajes “tão simplórios”.

        Não demora para que os outros três cheguem na sala e atrapalhem os pensamentos íntimos e reprimidos de Daniel. Camilo já chega perguntando o que fazer. Eloy diz que a noite nas cidades grandes tem muita coisa boa. Aírton retruca, lembrando que estão exaustos. Acomodam-se, um deitado no tapete, outros sentados ou recostados. A essa altura, Daniel já tinha ido mais para o canto que podia, como uma ostra envergonhada (ostra sente vergonha?).

        Todos se entreolham quando, de repente, Eloy puxa do bolso uma carteira de cigarros. Ao olhar surpreso de Camilo, responde:

        - Sem essa, mano, aqui não tem as frescuras lá de casa e eu não preciso  esconder! Quer um?

        Camilo nega, mas Betina logo pergunta se faz algum mal. Com a resposta negativa de Eloy, ela também acende um, mas logo começa a tossir desesperadamente. Pede ajuda, que a ensinem. Aírton apenas olha para ela “caretamente” decepcionado. Daniel e seus pensamentos parecem não ter saído dos parágrafos anteriores, quando ele admirava a menina. Betina é, na verdade, aquele tipo de garota que adora curtir a vida, da forma que for. Não mede consequências. Acha que “ficando” ela aperfeiçoa seu beijo e fica mais sensual. E também aprecia alguns porres escondidos só para se sentir desafiadora, importante. Sua sensualidade a fez garota cobiçada e, como dizem no Eden Garden. Só que o cigarro ela ainda não conhecia.

        - Maior barato, mano! Dê outro.

        - Não quer mesmo, Camilo? – insiste Eloy: - E você, Aírton? Não!? Deixem de ser caretas, vamos lá! Que mal tem? Aposto que nosso amigo aceita, né?

        E Eloy estende um cigarro para Daniel que, sem dizer nada, pega e começa a tragar. Parece estranho que ele não tenha tossido como Betina, recusando como os outros dois e sequer feito algum comentário como Eloy. Apenas aceitara, o que levava a crer que ele já fumava antes. Na verdade, Daniel nem está prestando atenção na conversa deles!

        - Acho uma caretice da parte de vocês – diz Betina.

        - Pois sim... Quanto custou esse seu maço? – Indaga Camilo. -  Então! Gastar dinheiro com esse negócio aí, uma fumaça fedida!

        - Olhe, gente, - completa Aírton – não quero ser careta, mas isso é um atalho, a vida foi realmente feita para se curtir, mas não para encurtá-la.

        - Vão à merda! Brada Eloy, acendendo com prazer mais um cigarro e se acomodando melhor na poltrona.

Nenhum comentário:

Postar um comentário