Cap. 11- Uma frase, um passeio, um
parque
O
apartamento está em profundo silêncio, são cinco e meia da manhã, Aírton dorme
como um anjo e sonha com sua fada, Pati.
Ele sonha com um passeio, ao lado da menina, por um lugar belíssimo, cheio de
árvores, estão de mãos dadas. De repente, descobre que é o mesmo lugar do outro
sonho! Tenta fugir, tem medo, mas Pati pede para que fique e ouça a voz de seu
interior. Aparece a luz azul forte de novo e de dentro dela sai o mesmo homem.
Parece confuso, mas ele diz: “Aírton, não se desvirtue pelo medo e nem se deixe
levar pelo arrependimento, as consequências podem...”
Neste exato momento, ele desperta,
assustado. Dá um pulo da cama, reclamando do barulho. São Daniel, Eloy, Betina
e Camilo que chegam. Betina, completamente tonta, sentindo-se uma princesa.
Eloy, fedendo a cigarro, mas também muito feliz. Camilo não tão contente,
apenas um pouco “alegre”. Daniel não fala nada, toma banho e prepara-se para se
deitar, quando ouve de Betina.
- Que foi, Dâni, por que não ficou com
ninguém?
Aírton está deitado, mas ouve tudo de
lá.
- Não gosto... – responde Daniel.
- É bicha? – pergunta, soltando uma
despreocupada gargalhada, Betina.
- Como assim?
- Desculpe, Daniel. – é Camilo ainda
enrolando a língua. – Minha irmã fica assim depois de noites como essa. Mas
diga, nunca ficou?
- Er, nã... não...
Para Betina e Camilo, aquilo era
impossível. Desconhecer o gosto do beijo, o gosto do prazer com quase quinze
anos de idade! Impossível. Entreolham-se. Aírton teme o que virá depois. Eloy
já esperava e grita de onde está:
- Mostra para ele como se faz, Betina!
Daniel, do sofá, treme, sua frio. Camilo
está tão tonto quanto a garota ou mais. Uma expectativa no ar.
Como pode os jovens serem até hoje
guiados pelas normas sociais, pelo modismo? Têm de ir a boates, ficar até tal
idade, caso contrário, são caretas. Ou bichas!
Betina, menina despreocupada, não sabia
nada de amor e felicidade, só sabia era gozar dos prazeres da vida. Para ela,
um beijo não representava mais do que um bom cheeseburger do Mc Donald’s.
Para ela, o que valia era quem estava sendo beijado, e não por quê.
Naquele momento, Daniel sentia-se
perdido, imóvel, chegou a desejar estar na rodoviária de volta. Só que era
tarde, e Betina chega mais e mais perto dele, imobiliza seus braços com suas
unhas afiadas e bem-pintadas, aproxima sua face da dele... e o beija.
Daniel não faz movimento algum. Na
verdade, não gosta daquele bafo de bebida que impregna o hálito da garota.
Afasta-a, sente nojo quando pensa no “skatista” e no cara da boate. Ela o olha, está fora de si. Eloy e
Camilo aplaudem, perguntam se Daniel gostou, ao que ele responde apenas se
virando de lado e chorando.
Não era isso que sonhava o ex-menino de
rua. Lutara tanto contra as prostitutas que disputavam as ruas com ele e seus
amigos, reprimira tanto a bebida que tinha destruído sua família, tinha nojo de
tudo isso e, de repente, a garota que ele sinceramente amava desrespeitava e
destruía todos os seus sonhos, seus valores e seu passado. Não sabia Betina
quem era e quem fora Daniel. Não sabia Betina que o menino jamais beijara
alguém, mas muito já lutara na rua por uma nota de um real, muito já cheirara
cola para não precisar comer durante o dia. Não sabia nada, Betina!
No quarto, Aírton já tomara consciência
de muitas coisas e agora chorava, ainda mais do que Daniel. Ele lembra-se das
sábias palavras do seu tio, do rosto angelical da Pati. Aírton já “ficara” duas
vezes, mas não achava importante esse
número, a quantidade. Namorara gaotas de que pensava gostar. Claro que agora,
diante da prima, elas pareciam tolas.
Só que Aírton chorava, soluçava
silenciosamente. Não por si, e sim porque sabe o quanto Betina, Eloy e talvez
Camilo e Daniel estavam desperdiçando, ao viver a vida dessa forma. O problema não era “ficar”, não era beber ou fumar. O
problema era que “a vida é como um brinquedo”. E deveria ser jogada com
alegria.
“Os anos para mim até agora passaram
para eles ainda hoje passam, mas, desde que aqui cheguei, para mim os dias
acontecem, os dias vivem, pulsam e choram comigo”, pensa Aírton.
A senhora Stephanie, na verdade este era
o nome artístico de Laura Maria, está morrendo de preocupação por causa dos
filhos. Onde estará Betina? Como estará tão desprotegida menina agora? A mãe de
Aírton não dá tanta importância, pensa que ele pode ter fugido para a Europa,
de que gostava tanto, mas que logo voltaria.
Dona Stephanie, porém, sabe o que sentiu
quando apareceu nesta história, e também admite ser coisa de mulher: era
intuição. Seus filhos, se ainda não estivessem passando, passariam por muitas
dificuldades...
Aírton é o primeiro a levantar-se. Duas
horas depois levantam-se Daniel, Betina, mais tarde Eloy e, por fim, Camilo.
Eles se sentam na cozinha, comem alguma coisa, já são onze horas. Querem saber
o que fazer... Aírton lembra-se do passeio que dará com Patrícia e,
educadamente, convida seus amigos.
Daniel está mais melancólico e triste do
que em seus dias de pobreza e miséria. É que antes lutava contra algo concreto
e aspirava apenas a dinheiro e comida, a um cobertor e um teto. Agora luta
contra si mesmo, contra seus próprios sentimentos e aspira ao amor, ao amor de
uma menina fútil que lhe usara há poucas horas, dando-lhe um beijo nojento.
Betina, porém, depois do beijo que dera
em Daniel e da reação do amigo, ficou extremamente chateada e, por algum motivo
que não decifrara, tinha chorado a noite inteira. Acordou com os
olhos inchados.
Camilo gostou da idéia de ir ao parque,
porque precisava vender de novo tais refrigerantes. Eloy também aprovou, porque
queria rever seus “amigos”. Aírton é que logo se arrependeu do convite.
O relógio batia duas da tarde e Pati,
vestida com traje esporte, cabelo preso e camiseta do seu time de futebol do
coração chega ao apartamento do primo. Todos já estavam esperando. Ela olha,
como se desgostando da idéia de levar os demais, só que não comenta nada e vão
em silêncio. O parque era perto, dava para ir a pé.
No caminho, o inesperado: Daniel e
Aírton se olham apreensivos, é que Betina e Patrícia estão juntas, lado a lado,
e inevitavelmente precisam conversar:
- Oi, garota...
- Oi. – Patrícia teme Betina, mas não
sab por quê.
- Vocês aqui são tão quietinhas...
- Nem todas, talvez eu.
- Pois é.
Depois de algumas frases de
conhecimento, Betina resolve se abrir.
- Olhe, preciso conversar com uma amiga,
mas as minhas estão a uma hora de avião e setecentas de ônibus daqui.
- Fala.
- É que ontem fiquei com o cara mais
lindo e musculoso do mundo, uma loucura, o beijo dele faz qualquer pessoa da
nossa idade se sentir mais mulher. – Pati se incomoda com aqueles
comentários, mas prossegue ouvindo. – Entretanto, depois que chegamos em casa,
eu fiz uma burrada. – Betina baixa a cabeça.
- O quê?
- Bem, eu fiquei com pena do Daniel
porque ele nunca tinha ficado” e dei um beijo nele.
- Nossa!
- Fiz bem?
- É, quer dizer, acho que não... Mas, e
ele?
- Acho que não gostou. Onde foi que eu
errei! Falta treinamento, será?
- E, tu sabes por que ele não gostou? –
pergunta maliciosamente Pati. Betina não gosta e se afasta, fingindo que
precisa falar com o irmão mais velho. Patrícia também sai e pede licença para
Aírton para falar a sós com Daniel.
- Fiquei sabendo do que ela fez ontem.
- Vocês são todas iguais!
- Não, acho que nós somos iguais, tu e
eu.
- Como assim?
- Também nunca “fiquei”, como dizem
eles. Na verdade, isso para mim significa que não encontrei um amor
verdadeiro, e não que nunca beijei quaisquer lábios que se dispusessem. Não se preocupe, Daniel, és normal, apenas queres amar enquanto os
outros querem gozar.
- E por que não sou diferente? Sofro
tanto agora!
- Saibas que Betina sofre ainda mais. Sofre
por sentir falta de alguma coisa e sofre porque não consegue descobrir o que é
isso. Tu sofres só por sentir falta... E mais: és diferente, porque
descobriste, antes do gosto do beijo, o gosto do amor.
Caminham mais um tempo sem falar sobre assuntos sérios,
digamos assim.
Chegando ao parque, Camilo, Camilo
despede-se do restante do grupo e vai ganhar dinheiro, literalmente a qualquer
custo. Eloy também sai, quando avista um dos amigos que conhecera no outro dia.
- Tem fogo?
Aírton, Patrícia, Daniel e Betina estão
sozinhos. Passeiam despreocupados pelo parque, olham para todos os lados,
querem conhecer tudo. Os lagos, as árvores, até os pobres estirados no chão,
como se denunciando a pobreza dum país desigual, fascinam aqueles olhos
virgens.
Os olhos dos moradores do Eden Garden
não conhecem além da realidade de suas janelas. E agora ali estava Daniel para
mostrar o que era pobreza e ali estava Patrícia para mostrar o que era amor.
Betina também mudara com a presença dos
dois. Patrícia representava a feminilidade, o romantismo, enquanto Daniel...
bem, não poderia ser verdade.
Caminham mais um pouco e os garotos
oferecem um sorvete para as garotas. Ambas topam, e enquanto apreciam tão doce
sabor de chocolate, Betina afasta-se com Daniel. Percebera o “clima” entre os
outros dois.
Daniel, porém, ainda está apático e
melancólico. Betina apenas observa tamanha frieza com certo medo; que mal ela
teria feito? Aírton olha fixamente para Patrícia. Vê na menina todo o carinho
de que tanto precisava. Seu rosto e seus lábios bem-desenhados, seus dedos
pequeninos, seu olhar doce e suave, sua voz, seu cheiro... Apaixonou-se por uma
menina que parecia uma fada. Um anjo. E acaba fazendo o inevitável, ainda que
precipitadamente:
- Quer namorar comigo?
O mundo de Pati deu voltas e mais voltas
naquele segundo. Ela se lembrou da infância, da irmã, do pai, das cartas
inocentes que enviava ao primo, do jovem sedutor que ele se tornou, do jantar,
dos seus olhos, do seu olhar e, finalmente, do seu pedido. E do seu parentesco.
- É que, primo, somos,,, Bem... somos
primos!
- Eu sei, mas te amo tanto. Não me
lembro do que há neste parque, nem dos lagos e nem do sol, porque só tenho
olhos para você!
- Não sei... preciso... bem... de um
tempo. – Os três pontos evidenciam a falta de segurança na voz da menina.
Aírton não fala nada. Apenas se retira
para pôr fora o palito de picolé. Olha decepcionado para a menina, que tenta
consolá-lo.
- Eu gosto muito de ti, mas... somos,
além de parentes, muito... novos.
Patrícia estava tão apaixonada quanto
Aírton, mas as mulheres (algumas) têm alguma coisa que as faz mais temerosas.
Ou será cautelosas? Na verdade, ele seria o próximo namorado de Pati, em vez de
viver o presente, ela preferiu pensar no futuro. Aírton ficou inconsolável e
tristonho. Abatido, mesmo.
Quase que ao mesmo tempo, como se um
cupido tivesse errado a flecha nos dois pombinhos e acertado em Daniel e
Betina, ela pergunta para o garoto o que ele tem.
Daniel, muito apático, não responde,
permanece em silêncio. Betina insiste, olha fixamente em seus olhos, puxa o
rosto dele para perto do seu. Daniel tenta fugir, mas Betina pergunta mais e
mais o motivo de tanto distanciamento, tanta tristeza! Ele, enfim, cantarola
alguns versos: “Às vezes você me pergunta/ por que é que sou tão calado/ não
falo de amor quase nada/ nem fico sorrindo ao seu lado...”
Betina estava tão apaixonada quanto
Daniel, mas os homens (alguns) têm alguma coisa que os faz um tanto vingativos.
Ou seria orgulhoso? Na verdade, ela seria a primeira namorada de Daniel e, em
vez de viver o presente, ele preferiu pensar no passado e agarrar-se a
capítulos anteriores desta história. Afastou-se um pouco Betina ficou
inconsolável e tristonha. Mais ainda do que Aírton, porque não entendia o que
acontecia com ela.
Só que passaram-se alguns minutos, o sol
aliviava sua intensidade, o clima entre o quarteto pesava, até que...
- Betina!
“Como estará minha filhinha, como
estará?”, está evidente que dona Stephanie, enquanto movimenta toda a polícia
da capital, mais se preocupa com a filha do que com os outros dois. Será, de
novo, intuição?
É o mesmo “skatista” da estátua quem
chama Betina. Daniel sai, Aírton e Patrícia vão atrás dele, pressentindo a
mágoa do garoto. Só que não demora nem duas palavras para Betina voltar ao que
seria normal, deixar de lado o romantismo bobo, a relação utópica com Daniel e
jogar-se nos braços do ilustre e “gostoso” desconhecido.
Patrícia tenta falar com Daniel, já que
Aírton não lhe dirigia mais nem uma sílaba, só que o garoto ainda parece em
transe, e continua cantarolando.
Eloy passeava despreocupado quando topou
com Camilo. E o que fazia o irmão?
- Pois é, mano, dá para ganhar uma
grana. Próximo!
Camilo comprara umas roupas de uma
cigana e agora dizia prever o futuro das pessoas através da folha de uma
palmeira especial.
Eloy sai, rindo e com o cigarro aceso.
Ah, e com o peito descoberto sendo apalpado pela mesma garota para quem ele
sorrira na primeira visita ao parque.
Pati sugere que eles vão para casa.
Topam. Avisam Betina e saem vagarosamente do parque. As pedras, antes tão
fortes, agora parecem ínfimas; o lago, antes tão azul, parece uma poça de
lágrimas e o sol parece arder em chamas.
Como é estranha a juventude, de uma
hora para outra deixamos de estar alegres e saltitantes e passamos a nos sentir
os últimos da face da Terra. Por quê? Por que tudo isso? Será que Aírton e
Daniel sentiam-se tão mal só por causa do “fora” que levaram? Mas Pati nem
havia tirado as esperanças de Aírton!
Na verdade, o jovem transforma seus
amores em paixões e, com elas, escondem os seus reais problemas. Aírton
escondeu a saudade de casa e o arrependimento de ter fugido, de ter
confiado em tão alienados amigos. Daniel escondeu o medo de voltar e ser pobre
e miserável, escondeu o passado e a fúria. Agora, vinha tudo à tona, e
Pati no meio daquela confusão psicológica.
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