Cap.12. Um lapso, uma menina, uma
vida que foi salva
Atravessavam a rua e já estavam quase
chegando Daniel. A menina avisa que tenham cuidado, mas Aírton parece não ouvir
e começa a caminhar. Sorte que aquela primeira pista está vazia, e eles param
no canteiro do meio da avenida. Aírton, porém continua.
Estava tão melancólico que não se
importava com as consequências de atravessar a rua assim, despreocupado,
inconscientemente pedia à morte para livrá-lo de todos os problemas. Deu um
passo, dois, e Pati olhava abismada a cena, não esperava isso do primo.
Um carro virou para não atingi-lo, o
motorista berrou, e quando outro vinha de trás, Patrícia puxou o primo para
perto de si e, por causa desta ação impulsiva, Aírton pôde ainda suspirar mais
uma vez.
- Está louco!- diz Patrícia.
- Por que não?
Atravessam e, já na calçada, a menina
grita com seu primo:
- Poxa. Aírton, olha só para o céu, para
as árvores, para tua prima e para ti! Olha para o que era quando bateram na
minha porta e para o que é hoje!
Pati estava ainda transtornada e
orgulhasa do ato heroico, olhava insistentemente para Aírton como se descidindo
alguma coisa.
- Tudo bem, ficasse assustado com o
mundo que há de trás dos muros do tal Eden Garden, mas já está na hora de
agarrar-se nas coisas boas deste mundo. – completa Daniel.
Estão em casa, Camilo cheio de dinheiro
e repetindo bem alto para Eloy, que parece reprimi-lo:
- Eu não sou nada ortodoxo! Nada! Já
disse!
Aírton está sentado, mas voando longe,
tanto que logo que entrou no apartamento, Betina perguntou:
- O que houve?
E Daniel respondeu:
- Nosso Romeu encontrou uma Julieta à
altura, teve mais sorte do que este reles plebeu!
Daniel, Aírton e Betina, depois do
acontecido, caminharam um pouco em silêncio. Mas, em dado momento, Patrícia
pediu que Daniel fosse na frente, encontrou Aírton num muro e disse apenas duas
palavras para ele: te amo.
A menina, com aquele jeito delicado e
encantador, aproximou-se do apaixonado primo e, em vez de beijá-lo, como
esperava Aírton, abraçou-o. Foi um abraço forte e mágico. Era como se dois
corpos virassem, por alguns instantes, uma só alma. Os olhos de ambos estavam
fechados e queriam parar o tempo. A garota se afasta e, só então, deixa que
seus lábios encostem nos do primo, agora também namorado. E fala, com os olhos
cheios de lágrimas e com o coração em chamas:
- Primeiro o amor, depois o beijo.
Por isso Aírton estava tão bobo. Aquele
abraço o havia ensinado o que era o amor
e o havia pego em seu ponto fraco: todo jovem, inclusive ele, precisa de
carinho.
Betina sentira a farpa que o outro soltara e, por isso,
afastava-se comentando provocativamente:
- Ai, aqueles braços do Mané... até
agora sinto o gosto de seu beijo!
Se queria provocar Daniel, consegue. Ele
se retira e resolve sentar-se na escada que divide seu andar do andar do
apartamento de seu Mário. Precisava de consolo, mas quem iria consolá-lo
naquele momento?
Chega, então, uma pequenina garota com
uma pesada sacola de supermercado: era Michelli. Não fala nada, apenas senta-se
ao lado do tristonho porto-alegrense que a essa altura havia até se esquecido
da fome do corpo e se amargava com a fome da alma.
-Oi, - diz ele, educadamente.
- É um dos amigos do Aírton, né? –
pergunta a pequenina.
- É, sou sim... mais ou menos...
- Por que está tão triste?
- Nada, nada não. Não te preocupes tão
doce e pura cabecinha com esses problemas, os problemas do coração!
- Por que não?
- Não vai entender, nunca amou alguém
como eu amo aquela boba!
- Dâni... – a timidez da menina
esvazia-se num sorriso. – Posso te chamar assim, né?
- Claro.
Com ar de muito sabida, ela continua.
- Sabe que entendo, sim, sobre as coisas
do coração, como dizes, sobre amor. Eu, meu pai e minha mana. Ela escreve isso
nos seus poemas, mas eu só sei, por enquanto, dois remédios para isso tudo.
- Isso o quê?
- O amor, meu caro, o amor... Parece um
buraco que se abre dentro da gente!
- Ora, a menina entende mesmo! Mas
fale-me, quais são os remédios?
- Sorrir. Sorrir e chorar.
No apartamento logo acima, os quatro
estavam tão afoitos, que nem notaram a
ausência do quinto garoto. Betina tomava banho e chorava, sofria como nunca,
estava tão ou mais melancólica do que Aírton quando este deixou-se abater pela
insensatez que quase o matou.
Aquela que parecia tão fria e dona de si
não mais conseguia sorrir e cantarolar no banho. Antes de entrar, olhou-se
diversas vezes no espelho e nele achou todos os defeitos: espinha no lugar
errado, barriga saliente demais, cabelos demasiadamente oleosos: “A tal
Patrícia é muito mais bonita”, pensou.
No fundo, ela sabia que nem a Patrícia e
nem Michelli eram mais bonitas do que ela, exuberante garota, e sim mais
felizes! E isso as fazia mais bonitas! Eram mais puras, o que também as fazia
mais bonitas! Não com tantas curvas, não com seios tão redondos e nem com
quadril tão bem-desenhado, mas com uma eterna e inabalável beleza interior. Só
agora ela entendia aquela história de que bonito não era o olho, mas o jeito
de olhar, não era a voz, mas o jeito de falar, não eram as pernas, mas o jeito
de andar.
E a depressão daquela que parecia imune
ao amor produzia lágrimas, lágrimas que dividiam espaço com a forte ducha de
água.
Produziam também ódio, ódio dela mesma.
E, de repente, a cobiçada Betina se viu com o sabonete na mão direita, esfregando
desesperadamente seus lábios. Como se limpando-se de algum pecado. E seus olhos
pouco viam, ardiam em lágrimas; seu coração pouco pulsava, ardia em dor.
- Michelli, sabes tanto das coisas do
coração, mas como?
- Posso contar? É que as minhas coleguinhas
não gostam de ouvir. Na verdade elas são tão bobas, gozam de mim só porque
gosto de tocar, só porque sou mais inteligente. Mas sou mesmo! Bem,
deixa aquelas bobonas para lá, sei tanto sobre amor porque perdi o maior amor da minha vida, o
maior amor de todo ser humano: minha mãe.
Não pense que o Eden Garden está
tranquilo só porque a noite começa a mostrar suas garras e o vento faz o frio insuportável. Já são dez policiais
procurando em todos os cantos de São Paulo, em todos os cantos do condomínio. A
mãe deles está desesperada e agora arde em febre. O pai tinha sido avisado, mas
só poderia voltar daqui a duas semanas porque não havia vôo para o
Brasil.
Michelli e Daniel ainda conversavam:
- Minha mãe fugiu com um homem rico e
muito elegante. Papai chorou muito, acho que o coração dele murchou, porque
nunca vi tantas lágrimas. Ele diz que chorar é sangrar pelos olhos...
Mas não sei, para mim, não. Bem, mamãe
fugiu e papai sofreu. Só que Pati também sofreu muito, precisou escrever para
sarar. E eu sofri muito, também!
- Pobre pequenina...
- Pobre, por quê? Pobres são vocês,
adolescentes, que brigam com a mãe de vocês o tempo todo e aí choram por causa
de meninas como minha irmã! O amor, “pequenino”, é forte nas crianças também e
eu até hoje sinto saudades da mamãe! Até hoje!
O grito da pequenina sai entalado.
Passam-se três minutos, agora Michelli está cabisbaixa e Daniel já se revigora:
- Mas Michelli...
- Só que foi bom, foi bom mamãe ter fugido porque aprendi a ser
mais madura, mais inteligente!
Michelli não via sua mãe porque ela
tinha fugido atrás do dinheiro e a abandonara. Daniel não veria mais sua mãe
porque ela tinha preferido fugir do dinheiro, abandonando-o. A menina continua,
neste momento, mostrando-se muito mais sábia:
- Fiquei mais velha, mais triste e mais
feliz.
Sai a pequenina e vai para a casa.
Daniel ainda fica ali, cantarolando os versos de Lulu Santos: “Nada do que foi
será/ de novo/ do jeito que já foi um dia...”
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