segunda-feira, 3 de setembro de 2012

RELEITURA DO CAP. 12


Cap.12. Um lapso, uma menina, uma vida que foi salva

 

        Atravessavam a rua e já estavam quase chegando Daniel. A menina avisa que tenham cuidado, mas Aírton parece não ouvir e começa a caminhar. Sorte que aquela primeira pista está vazia, e eles param no canteiro do meio da avenida. Aírton, porém continua.

        Estava tão melancólico que não se importava com as consequências de atravessar a rua assim, despreocupado, inconscientemente pedia à morte para livrá-lo de todos os problemas. Deu um passo, dois, e Pati olhava abismada a cena, não esperava isso do primo.

        Um carro virou para não atingi-lo, o motorista berrou, e quando outro vinha de trás, Patrícia puxou o primo para perto de si e, por causa desta ação impulsiva, Aírton pôde ainda suspirar mais uma vez.

        - Está louco!- diz Patrícia.

        - Por que não?

        Atravessam e, já na calçada, a menina grita com seu primo:

        - Poxa. Aírton, olha só para o céu, para as árvores, para tua prima e para ti! Olha para o que era quando bateram na minha porta e para o que é hoje!

        Pati estava ainda transtornada e orgulhasa do ato heroico, olhava insistentemente para Aírton como se descidindo alguma coisa.

        - Tudo bem, ficasse assustado com o mundo que há de trás dos muros do tal Eden Garden, mas já está na hora de agarrar-se nas coisas boas deste mundo. – completa Daniel.

 

        Estão em casa, Camilo cheio de dinheiro e repetindo bem alto para Eloy, que parece reprimi-lo:

        - Eu não sou nada ortodoxo! Nada! Já disse!

        Aírton está sentado, mas voando longe, tanto que logo que entrou no apartamento, Betina perguntou:

        - O que houve?

        E Daniel respondeu:

        - Nosso Romeu encontrou uma Julieta à altura, teve mais sorte do que este reles plebeu!

 

        Daniel, Aírton e Betina, depois do acontecido, caminharam um pouco em silêncio. Mas, em dado momento, Patrícia pediu que Daniel fosse na frente, encontrou Aírton num muro e disse apenas duas palavras para ele: te amo.

        A menina, com aquele jeito delicado e encantador, aproximou-se do apaixonado primo e, em vez de beijá-lo, como esperava Aírton, abraçou-o. Foi um abraço forte e mágico. Era como se dois corpos virassem, por alguns instantes, uma só alma. Os olhos de ambos estavam fechados e queriam parar o tempo. A garota se afasta e, só então, deixa que seus lábios encostem nos do primo, agora também namorado. E fala, com os olhos cheios de lágrimas e com o coração em chamas:

        - Primeiro o amor, depois o beijo.

        Por isso Aírton estava tão bobo. Aquele abraço o havia  ensinado o que era o amor e o havia pego em seu ponto fraco: todo jovem, inclusive ele, precisa de carinho.

 

        Betina sentira a  farpa que o outro soltara e, por isso, afastava-se comentando provocativamente:

        - Ai, aqueles braços do Mané... até agora sinto o gosto de seu beijo!

        Se queria provocar Daniel, consegue. Ele se retira e resolve sentar-se na escada que divide seu andar do andar do apartamento de seu Mário. Precisava de consolo, mas quem iria consolá-lo naquele momento?

        Chega, então, uma pequenina garota com uma pesada sacola de supermercado: era Michelli. Não fala nada, apenas senta-se ao lado do tristonho porto-alegrense que a essa altura havia até se esquecido da fome do corpo e se amargava com a fome da alma.

        -Oi, - diz ele, educadamente.

        - É um dos amigos do Aírton, né? – pergunta a pequenina.

        - É, sou sim... mais ou menos...

        - Por que está tão triste?

        - Nada, nada não. Não te preocupes tão doce e pura cabecinha com esses problemas, os problemas do coração!

        - Por que não?

        - Não vai entender, nunca amou alguém como eu amo aquela boba!

        - Dâni... – a timidez da menina esvazia-se num sorriso. – Posso te chamar assim, né?

        - Claro.

        Com ar de muito sabida, ela continua.

        - Sabe que entendo, sim, sobre as coisas do coração, como dizes, sobre amor. Eu, meu pai e minha mana. Ela escreve isso nos seus poemas, mas eu só sei, por enquanto, dois remédios para isso tudo.

        - Isso o quê?

        - O amor, meu caro, o amor... Parece um buraco que se abre dentro da gente!

        - Ora, a menina entende mesmo! Mas fale-me, quais são os remédios?

        - Sorrir. Sorrir e chorar.

 

        No apartamento logo acima, os quatro estavam  tão afoitos, que nem notaram a ausência do quinto garoto. Betina tomava banho e chorava, sofria como nunca, estava tão ou mais melancólica do que Aírton quando este deixou-se abater pela insensatez que quase o matou.

        Aquela que parecia tão fria e dona de si não mais conseguia sorrir e cantarolar no banho. Antes de entrar, olhou-se diversas vezes no espelho e nele achou todos os defeitos: espinha no lugar errado, barriga saliente demais, cabelos demasiadamente oleosos: “A tal Patrícia é muito mais bonita”, pensou.

        No fundo, ela sabia que nem a Patrícia e nem Michelli eram mais bonitas do que ela, exuberante garota, e sim mais felizes! E isso as fazia mais bonitas! Eram mais puras, o que também as fazia mais bonitas! Não com tantas curvas, não com seios tão redondos e nem com quadril tão bem-desenhado, mas com uma eterna e inabalável beleza interior. Só agora ela entendia aquela história de que bonito não era o olho, mas o jeito de olhar, não era a voz, mas o jeito de falar, não eram as pernas, mas o jeito de andar.

        E a depressão daquela que parecia imune ao amor produzia lágrimas, lágrimas que dividiam espaço com a forte ducha de água.

        Produziam também ódio, ódio dela mesma. E, de repente, a cobiçada Betina se viu com o sabonete na mão direita, esfregando desesperadamente seus lábios. Como se limpando-se de algum pecado. E seus olhos pouco viam, ardiam em lágrimas; seu coração pouco pulsava, ardia em dor.

 

        - Michelli, sabes tanto das coisas do coração, mas como?

        - Posso contar? É que as minhas coleguinhas não gostam de ouvir. Na verdade elas são tão bobas, gozam de mim só porque gosto de tocar, só porque sou mais inteligente. Mas sou mesmo! Bem, deixa aquelas bobonas para lá, sei tanto sobre amor  porque perdi o maior amor da minha vida, o maior amor de todo ser humano: minha mãe.

 

        Não pense que o Eden Garden está tranquilo só porque a noite começa a mostrar suas garras e o vento faz  o frio insuportável. Já são dez policiais procurando em todos os cantos de São Paulo, em todos os cantos do condomínio. A mãe deles está desesperada e agora arde em febre. O pai tinha sido avisado, mas só poderia voltar daqui a duas semanas porque não havia vôo para o Brasil.

       

        Michelli e Daniel ainda conversavam:

        - Minha mãe fugiu com um homem rico e muito elegante. Papai chorou muito, acho que o coração dele murchou, porque nunca vi tantas lágrimas. Ele diz que chorar é sangrar pelos olhos... Mas não sei, para  mim, não. Bem, mamãe fugiu e papai sofreu. Só que Pati também sofreu muito, precisou escrever para sarar. E eu sofri muito, também!

        - Pobre pequenina...

        - Pobre, por quê? Pobres são vocês, adolescentes, que brigam com a mãe de vocês o tempo todo e aí choram por causa de meninas como minha irmã! O amor, “pequenino”, é forte nas crianças também e eu até hoje sinto saudades da mamãe! Até hoje!

        O grito da pequenina sai entalado. Passam-se três minutos, agora Michelli está cabisbaixa e Daniel já se revigora:

        - Mas Michelli...

        - Só que foi bom, foi  bom mamãe ter fugido porque aprendi a ser mais madura, mais inteligente!

        Michelli não via sua mãe porque ela tinha fugido atrás do dinheiro e a abandonara. Daniel não veria mais sua mãe porque ela tinha preferido fugir do dinheiro, abandonando-o. A menina continua, neste momento, mostrando-se muito mais sábia:

        - Fiquei mais velha, mais triste e mais feliz.

        Sai a pequenina e vai para a casa. Daniel ainda fica ali, cantarolando os versos de Lulu Santos: “Nada do que foi será/ de novo/ do jeito que já foi um dia...”

 

 

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