Cap. 9. Um convite, um
abraço, uma história de amor
- Primo, priminho...
Michelli vai entrando apartamento
adentro, mas quando vê Eloy estirado no sofá, olhando televisão, dá dois passos
para trás e muda suas feições completamente. Enche-se de medo. O mais velho
diz:
- Ei, ei menininha, eu não mordo! Venha
cá, fale...
Ela volta, mas ainda muito assustada:
- Que... que... quero falar com Aírton.
- Entre!
Eloy não era ruim. Ele ajeita-se e grita
pelo outro. Convida a menina a entrar, esta ainda tremendo de medo.
- como se chama a doce donzela? –
pergunta.
- Michelli... – responde, hesitante.
- Priminha, tudo bem? ? – é Aírton que
sai do quarto, onde escrevia no seu laptop
o primeiro capítulo daquela fascinante aventura.
- Tu... tu... tudo. – ainda está
amedrontada. – Só vim te lembrar que o quadro ainda está lá em casa. Mas o papai disse que só devolve se vocês
forem jantar lá hoje de noite. Os cinco.
- É... bem...
- Tchau! – sai, como uma flecha, a
menina.
Aírton vira-se para Eloy, que apenas responde
com os ombros, como se perguntasse se tem alguma alternativa. Betina reluta,
mas o irmão mais velho a convence. Daniel está tristonho, mas aceita o convite.
Camilo adora a idéia e pensa que pode revelar no jantar o seu grande triunfo
daquela tarde!
Aprontam-se, vestem roupas elegantes,
Betina um vestido preto que deixa suas curvas tão desejadas ainda mais
esbeltas. Daniel é o mais abatido e apático, vê agora na garota não (só) uma
linda mulher, e sim um símbolo das chamas e do desejo. Eloy apronta-se como
pode, Camilo pergunta se não devem esconder o olho roxo e Aírton apenas sorri
enquanto fala:
- Ele já sabe que andamos brigando. Meu
tio é esperto... Muito, até!
Descem lentamente as escadas. Mal Aírton
encosta na campainha e Michelli já abre a porta, sorridente e arrumada como
adulta, sem perder seu costumaz e especial jeito moleque de ser.
- Oi, primo!
Entram por ordem Aírton, depois Eloy,
Camilo, Betina e, por último, Daniel. O sobrinho de seu Mário apresenta-os um a
um, mas omite o fato de Daniel não ser do Eden Garden. Diz apenas que é um
amigo seu lá de Sampa.
- E onde está minha outra prima, a Pati?
– pergunta ansioso, Aírton.
- Conheces bem as prendas destes campos!
Está se arrumando e já vem – dirige-se aos demais – E vocês? Querem ouvir um
pouco das aulas de História? Brincadeira... vá lá, digam, estão gostando daqui?
- Sim...
- É...
- Nada mal...
- Por que não...
Diante de tão mornas respostas, seu
Mário se levanta, vai até o quarto e volta com um violão debaixo do braço. Pede
que Michelli traga o bumbo, a menina manja aquele negócio, e fala alguma coisa
ao grupo, completando assim:
- Por isso gosto tanto desta canção, é o
símbolo deste povo gaudério.
Todos estão atônitos diante da energia do
“velho”, ainda mais depois de tão lindo dedilhado introdutório e de tão
delicada percussão de Michelli. Cantarola, então com a voz firme do “bom
gaúcho”.
Eu
quero caminhar nos campos
sentindo as
coxilhas
das ervas do
rio...
Aplaudem no final, mas ainda muito
timidamente.
- Do que vocês gostam? – pergunta Mário.
– Este bigode aqui não me deixa conhecer muita coisa a mais do que a boa
gaita...
Betina é mais extrovertida:
- Toca Lulu Santos, toca...
- Vamos lá, então. Michi, bem forte. –
E, seguindo a batida ritmada da menina, Mário começa a tocar e cantar em
perfeita sincronia:
Nada do que foi
será
de novo do jeito
que já foi um dia
tudo passa
tudo sempre
passará...
- É com vocês! – diz Mário.
Aos poucos o grupo vai se soltando e, no
final, já estão todos desinibidos e gritando bem alto: “Como uma onda no mar”.
- Bravo, bravo!
– aplaude Mário. – Mas ainda tá baixo, tá baixo!
Permanecem ali mais algum tempo, Mário a tocar, Michelli
dando um show à parte ao fazer de tão delicados dedos e de tão pura infância
uma parte da alma da música. Estão a interpretar Caetano Veloso.
Você é linda
mais que demais
você é linda,
sim.
Cantavam os sete quando de repente uma
oitava e mais suave, mais doce, mais potente e mais feminina voz ressoa do
quarto ao lado.
Esta
canção
é só para dizer
e diz.
Aplaudem e sai do quarto Pati, a tão
aguardada prima de Aírton.
- Gurizada, - salta seu Mário pondo o
violão de lado. – apresento a guria mais cobiçada do pedaço, Patrícia.
Realmente, Patrícia era linda. Não muito
alta, não muito baixa, talvez com um metro e setenta. Seus cabelos loiros e
ondulados ressaltavam tão belas feições, faziam de seus lábios e de seu olhar a
mais bela tradução do belo. Seu perfume era tão doce e suave quanto o aroma das
flores do Eden Garden e para Aírton, principalmente, tudo em volta pareceu ter
outra cor. Apenas uma luz brilhava ao centro.
Betina não gostou muito da menina,
olhou-a de cima abaixo e viu que havia uma “concorrente” no pedaço. Mas só
mesmo Aírton ficou a admirar sua prima, os demais permaneceram conversando.
Eloy insistia em aprender a tocar violão, enquanto Camilo não se convencia de
não saber tocar um instrumento que até a pequenina dominava.
- Como vais, primo? Nas cartas não
parece tão tímido.
- É... bem... vou bem. Agora ainda
melhor. Faz tempo, não?
- No Natal passado...
- Uma pena. Mas percebi que um feixe de
luz ficou por lá e agora sei de onde surgiu.
- Ora, que gentileza a sua.
Conversam por mais uns dez minutos; a
beleza de Patrícia domina, hipnotiza Aírton. Comem em silêncio, apenas um
olhando para o outro e, principalmente, Aírton para a prima, Patrícia para o
primo.
Michelli resolve quebrar o silêncio,
perguntando o que pessoas chiques como as do Eden Garden costumam comer. Seu
Mário não gosta da colocação, mas os jovens riem.
- Olhe, menina, não lembro bem, mas
jamais jantei tão bem-acompanhado! – diz Camilo para a garota, provocando risos
e avermelhando as bochechas de Michelli.
- Creio que eu também não. – completa
Aírton, sem desviar os olhos de Pati.
Passam-se alguns minutos e, depois de
uns goles de refri, Camilo diz:
- Quero fazer um comunicado aos meus
amigos, se o senhor me dá licença? – dirige-se a Mário. – Estávamos começando a
ter problemas de dinheiro, mas hoje já consegui cem pila. Cem pila, gente, cem
pila! E tenho até planos para amanhã.
- Qual é a fórmula? – indaga, em tom de
brincadeira, Mário.
- Simples, comprei umas latinhas de
refri no super e vendi pelo dobro do preço nas esquinas. Fiz de conta que eu
era aleijado. Todo mundo comprava para ajudar!
Seu Mário pasma. Eloy, Betina e Daniel
também. Michelli não entende e continua a brigar com a comida. Aírton e Pati...
bem, eles ainda estão há alguns parágrafos atrás.
- Que foi? Não gostaram? – pergunta
Camilo.
- Digamos que é uma forma pouco ortodoxa
de se ganhar dinheiro. – é seu Mário quem diz.
Camilo repete seu jargão:
- Eu não sou muito ortodoxo!
Continuam comendo em silêncio, até que
todos cruzam os talheres. Michelli, como de costume, não comeu nada. Daniel
também mal tocou na comida, mas pelo menos conseguiu disfarçar duas ou três
lágrimas que temperaram seu arroz. Aírton e Pati não saberiam nem mesmo dizer o
que havia em seus pratos.
- Por fim, gurizada, o quadro. Até
coloquei enrolado em um pano para fazer suspense. O cartunista que vocês
arranjaram é bom barbaridade!
Todos, até os pombinhos, olham para as
mãos de seu Mário, que vagarosamente descobre o quadro.
- Nossa! – exclamam.
Aírton, agora, se perde
olhando para tão bela caricatura.
- Pagou a pena! - diz
Camilo.
Eloy não entende bem.
O quadro era pintado ao
fundo de preto e branco, como se uma luz fosse traçando um caminho que dava
para o céu. Sobre o fundo havia uma estrela, uma linda estrela dourada, e em
cada ponta dessa estrela, o rosto de um dos jovens.
Bem acima, estava Eloy.
Bem próximos, nas duas pontas de baixo,
estavam Daniel e Betina (o que agradou ao garoto). Completavam o quadro fiéis
rostos de Aírton, à direita, e Camilo, elegantemente engravatado. Mário faz
ainda um comentário, mas eles não ouvem bem, estão atônitos a admirar tão bela
obra de arte.
Estão já quase todos
dormindo, só no quarto de Aírton a luz do monitor de seu laptop mantém-se acesa. Ele escreve:
Não posso deixar de escrever minha segunda aventura, minha segunda
descoberta! Depois do real significado de vida e pobreza ensinado hoje à tarde
por Daniel, agora sei o que é amor! Ó, como é bela aquela minha prima. E como é
belo o amor! Como ele, só mesmo o quadro que meu tio nos mostrou. Uma arte, uma
arte tão completa quanto as pirâmides do Egito, só menos perfeita do que as
formas da Pati, do que o olhar da Pati, do que os lábios delicados da Pati...
Pensa ainda, antes de
desligar de vez o computador: “ Acho que nunca vou publicar tão reles
história”.
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