segunda-feira, 3 de setembro de 2012

RELEITURA DO CAP. 3


Um menino, um mendigo, um quinto jovem.

 

Quando o ônibus estaciona na capital catarinense, Eloy e Betina descem para esticar as pernas. Camilo prefere permanecer no ônibus e Aírton faz o mesmo, fingindo dormir, a fim de não incomodar. Estavam já exausto e falava muito até Porto Alegre. Camilo entretinha-se olhando pela janela o tempo todo, reparava em tudo e resolveu comentar com o amigo, que agora abrira os olhos:

        - Aírton, tenho notado... Lá em Curitiba tinha e aqui também têm, são umas pessoas muito feias, sujas, que ficam enroladas em u cobertor velho e mal lavado, tremendo de frio e pedindo dinheiro, comida. O que é isso? Porque os velhos não estão trabalhando e as crianças estudando?

        - Ou fugindo, como nós? – responde, já um pouco arrependido de ter vindo, Aírton.

        - Sem frescura, cara! Tô falando sério é o terceiro destes homens que vejo. Parece estranho. Achei que ia encontrar bandidos armados até os dentes e o que vejo são velhos sujos que nem dentes têm, que dirá armas!

        - Olhe, não sei bem o que é isso, mas ouvi falar uma vez que a cidade grande produz a pobreza. Como o restaurante do Eden, por ser muito grande, rejeita seus piores alimentos e produz lixo em excesso, a cidade rejeita seus “piores” cidadãos e os põe nas ruas, nas calçadas, a dividir espaço com o lixo que jogam da janela dos veículos. Como você faz agora.

        Camilo tenta segurar o papel do chiclete, mas não adianta. Pensa. É mesmo verdade o que diz o sábio amigo. Só que certamente o leitor sabe que Aírton está longe de ser um intelectual; a relação dos mendigos com o lixo é plausível, mas reflete o desconhecimento do que é a pobreza de fato.

        - E o que é ser pobre?

        - Olhe, pergunte lá em Porto para um desses velhos ou crianças. E acho que vou dar um pouco de dinheiro para um deles, que acha?

        - Não, nem pensar!

        Sorri. O leitor deve pensar como podem sorrir de uma situação dessas, mas às vezes o avarento Camilo chegava a provocar risos. O problema é que o protagonista dessa piada era um homem. E o palco, o Brasil.

        Voltam apressados Betina e Eloy, correndo e oferecendo refrigerante e salgadinhos. Recusam. Sentem-se, não sem antes fazerem  barulho suficiente para todos olharem para o quarteto. O ônibus parte.

        Seriam mais sete horas de viagem. Chegou certo ponto da estrada em que Aírton até se esqueceu dos preconceitos sociais com a leitura e tirou da mala “O Xangô de Baker Street”. Camilo só viu com o canto do olho a grossura da obra e exclamou internamente, com medo de magoar o garoto. “É maluco, só pode!”

        O CD de Eloy já havia acabado dez vezes, mas ele voltava e continuava ouvindo, até que a Betina sugeriu que ele trocasse, pusesse Paralamas, Lulu Santos, Renato Russo. Aliás, a música era a única arte que chegava sem censura no Eden Garden.

        Começa a anoitecer e Betina ouve a senhora do banco da  frente comentar com uma amiga que estão chegando,  dali a meia hora estariam em Porto Alegre. A essa altura, Eloy já queria saber por que não tinham vindo de avião.

        Vinte minutos, Betina começa a arrumar suas coisas.

        Dez minutos. Aírton fecha o livro.

        Cinco minutos. Camilo está fascinado com o trânsito conturbado, com as luzes, as propagandas.

        Um minuto. Ali está Porto Alegre, ali está a rodoviária. Irrita-se:

        - E agora?

        Na verdade ninguém sabia como chegar ao tal bairro...

        - como é mesmo o nome? – pergunta Eloy:

        - Deus menino, eu acho. – responde Camilo.

        - É isso aí! – confirma Aírton.

        - Bem, vou ali naquele balcão perguntar para a moça se aqui vendem aquele negócio... a felicidade. Me esperem.

        E Betina falava sério, foi lá e voltou decepcionada com a  gargalhada da moça detrás do balcão. Sugeriu brava, que fossem, então, até um próximo guichê.

        Começam a caminhar em direção ao outro lado da rodoviária até que Betina, por algum motivo que só os “deuses do destino” saberiam explicar, diz que precisa ir ao banheiro. Imediatamente Camilo se vira para o lado direito, onde o cheiro de fritura parece menos intenso e o corredor, um pouco maior. Todos fazem o mesmo. A garota, sempre renta à parede, com medo de tanta gente nova.

        De repente, logo que viraram e deram alguns passos, um grito: Ai!

        E, sob o salto de Betina, uma perna incha de dor. Um garoto se destapa de cobertores sujos mal cuidados, chorando.

        - Me deixem dormir, me deixem dormir! – diz o rapaz, na verdade jovem,  com uns doze anos.

        - Calma.

        O menino de rua (eles não sabem o que é isso), que  ainda  gritava, se acalma e começa a analisar um por um dos jovens. Eloy  irrita-se:

        - Olhe, meu chapa, não temos o dia inteiro, estamos procurando nossa casa.

        Então o menino se põe a chorar novamente e diz soluçando:

        - Vocês não me entendem, querem uma casa e eu quero apenas dormir! Não tenho sequer essa casa onde chegar. Há dois dias vim para este lugar imundo, onde sou humilhado a cada hora que sai um ônibus, as pessoas lá de dentro me olhando sem saber que espécie de animal selvagem eu sou. Na verdade, sou só um piá de catorze anos!

        Silêncio.

        - Também tenho catorze. – arrisca Betina.

        Vejam o paradoxo da cena. São quatro adolescentes recém-fugidos do melhor lar deste país que conversam, despreocupados, com um quinto adolescente que não tem sequer um lar. Não há malícia nem medo, não há intenção de roubar e enm receio de ser roubado. Betina fala com ele como se fosse a um amigo e todos ficam impressionados com a sinceridade da dor do “achado”.

        - Só que você parece mais novo do que eu. – completa a menina.

        - É... Não tenho muita sorte mesmo. Aliás, alguém tem uma grana para me pagar um sanduba?

        Eles nem sabem o que é sanduba!

        - Olhe, menino, qual é o seu nome? – pergunta Eloy, num raro momento de paciência.

        - Daniel.

        - Não, não é Daniel Só, é Daniel dos Santos Júnior.

        -Bem, Daniel, espere aqui que eu vou conversar com meus amigos. Só me diga uma coisa: conhece esta cidade como a palma da sua mão?

        O outro timidamente indica que sim, balançando a cabeça. E conhecia mesmo, ainda mais se comparando com aqueles marinheiros de primeiríssima viagem. Eloy chama os outros três a um canto cochicha:

        - Galera, tive uma idéia. Vamos pagar para este garoto ser  o nosso guia. Deixamos ele dormir lá no apartamento, damos comida e feito, nada mais de se perder, nada mais de ser enganado por motorista de helicóptero, que acham?

        Os outros se entreolham. Estão pasmos com Eloy, antes tão frio, e com a idéia de se confiar em um estranho. Na verdade, seus pais jamais haviam dito coisas do tipo “não ouça estranhos, não fale com ninguém na rua”. Então, Aírton se lembra de um livro que lera certa vez sobre alquimia e diz:

        - Gente, concordo com o Eloy; a gente ter encontrado esse cara é um  sinal. E lembra, Camilo, que já viu cinco deles antes, só que um pouco mais velhos? No mais, ele é inteligente e pode quebrar um galho. Eu estou começando a ver que não sei nada de cidade grande!

        Camilo não está muito convencido, mentalmente faz contas.  Betina  não o achara lá muito bonito, mas também  não opinava, por ela tudo bem. Camilo diz, então:

        - Estamos procurando onde comprar felicidade, e o que achamos? O quê? Tristeza. Aquele olhar do garoto é pura tristeza! Vamos deixar de comprar a felicidade para  pagar pela tristeza?

        Pois é, leitores, a vida tem sido isso, deixamos de viver pela felicidade, mas  pagamos pela tristeza .

        Consersam  mais uns minutos e resolvem fazer com que Daniel  participe da conversa.

O olhar antes tão melancólico agora ganhara  brilho e não se desviava do grupo.  Aírton é encarregado de falar:

        - Olhe, achamos você muito legal, bacana, mas não queremos comprar você, queremos comprar felicidade.

        Nunca Daniel riu tanto! Desabafou, exorcizou todos os  fantasmas do passado de sua vida. Ecoavam na rodovia aquelas gargalhadas, que para os demais jovens parecia um insulto.

        - Por que ri tanto?  É segunda vez que riem disso. É muito caro?

        - Não, - tenta dizer Daniel, ainda rindo – é que felicidade, meu amigo, não se compra. É que nem liberdade não se tem, se conquista.

        Essa idéia filosófica fora profunda demais, mas pelo menos conseguiu conquistar Camilo.

        - Tudo bem, me diga só mais uma coisa. Sabe onde fica o bairro Deus Menino?

        - Menino Deus? Claro que sei onde fica.

        - Você não tem onde passar a noite, nem o que comer, nem o que vestir de melhor e nem água para se banhar, não é verdade?

        -  É, não precisava me lembrar de tudo isso, mas é...

        - Então, venha conosco. Estamos completamente perdidos! Precisamos de você e em troca oferecemos casa, comida e  segurança.

        - O que preciso fazer? – diz Daniel, espantado.

        - Por enquanto, nos levar neste endereço aqui. – e Camilo mostra o local da casa de seu Mário.

        - Só mais uma coisa: - arrisca Camilo, lembrando o papo com Aírton na rodoviária catarinense – o que é pobreza?

        - Pobreza é o que viram há minutos atrás.

        - Ah, entendi. E a falta de dinheiro para comprar sanduba, um cobertor quentinho  e uma passagem para Sampa. – arrisca Camilo.

        - Também. Pobreza também pode ser falta de dinheiro. Mas a pior e mais dolorosa das pobrezas é a que acaba com as esperanças, faz do mundo um imenso precipício e de nossas forças, apenas lágrimas; do pensamento, chamas. Eis a pior pobreza e eu assim estava.  Agora, porém, me sinto rico, enriquecido.

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